Tratamento da PIF: “Passamos de uma doença 100% fatal para uma taxa de cura de cerca de 90%”
Está em curso uma verdadeira revolução no tratamento da peritonite infeciosa felina (PIF). Anteriormente uma doença fatal, a PIF tem agora respostas terapêuticas que conseguem salvar cerca de 90% dos gatos afetados pela patologia. A revista VETERINÁRIA ATUAL falou com a Dra. Sam Taylor e com o Dr. Tomás Magalhães sobre o protocolo terapêutico que esta prestes a chegar a Portugal.
O VIII Congresso de Medicina Felina, organizado pela Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC), decorreu a 12 e 13 de outubro em Lisboa e teve como tema a “Abordagem Diagnóstica e Terapêutica às Principais Doenças Infeciosas Felinas”.
A começar o encontro, esteve em destaque o novo paradigma médico-veterinário para o tratamento da PIF e a revista VETERINÁRIA ATUAL falou à margem do Congresso com a Dra. Sam Taylor – especialista europeia em medicina interna de pequenos animais pelo European College of Veterinary Internal Medicine – Companion Animals (ECVIM-CA) e especialista em medicina felina pelo Royal College of Veterinary Surgeons (RCVS) – que esteve no evento para, entre outras temáticas, falar sobre as respostas terapêuticas para a PIF que chegaram ao mercado. “Fomos de uma doença 100% fatal para agora vermos a cura em cerca de 90% dos doentes. É um desenvolvimento brilhante na medicina veterinária e podemos dizer aos tutores que a maioria dos doentes responde ao tratamento com sucesso”, começou por avançar a médica veterinária.
Em causa está a comercialização dos primeiros antivirais dirigidos ao tratamento da PIF. Desde 2021 que os médicos veterinários do Reino Unido passaram a poder usar o remdesivir [apenas na forma injetável], um fármaco inicialmente licenciado para a medicina humana, e, posteriormente, o seu análogo nucleósido, o GS-441524, disponível tanto na forma injetável, como em comprimidos.
Mais recentemente, no Reino Unido passou também a estar disponível o antiviral EIDD-1931, o análogo nucleósido do molnupiravir, apenas em comprimidos.
Para além do Reino Unido, outros países, como os Estados Unidos da América e a Austrália, avançaram com a comercialização do protocolo terapêutico para o tratamento da PIF há pouco mais de um par de anos, sendo que cada país optou por licenciar diferentes fórmulas de administração: a injetável, os comprimidos ou ambas.
Perante este avanço clínico, Tomás Magalhães, presidente do Grupo de Interesse Especial em Medicina Felina (GIEFEL) da APMVEAC, também lembrou à VETERINÁRIA ATUAL como, até ao aparecimento destes fármacos, um diagnóstico de PIF “era quase uma sentença de morte para aquele indivíduo. O prognóstico era muito negativo porque não tínhamos ferramentas para tratar a patologia”.
O cenário era de tal forma preocupante que, perante o diagnóstico de PIF, alguns tutores em Portugal recorriam ao mercado negro da importação dos fármacos, com todos os riscos associados à compra ilegal de medicamentos. Não era raro que, comprando os antivirais que começavam a ficar disponíveis noutros países através da Internet e administrando-os em casa sem supervisão especializada, os felinos aparecessem depois nos consultórios com reações adversas das injeções subcutâneas, afinal “tudo isso se passava sem controlo médico veterinário, já que não podíamos usar essas drogas em ambiente clínico, pois não era legal”, contou o médico veterinário.
Contudo, Portugal estará prestes a entrar na lista dos países com tratamentos para a PIF licenciados, o que irá modificar a prática clínica nacional nesta patologia. A Codivet, distribuidor cooperativo exclusivamente para a profissão veterinária, estabeleceu um acordo técnico com a BOVA Specials UK para a distribuição em território nacional do medicamento GS-441524 mediante uma autorização de utilização especial endereçada pelo clínico à Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) para cada caso em particular. Estarão a ser ultimados os pormenores entre a cooperativa e a DGAV para que o processo possa decorrer de forma célere e sem entraves alfandegários.
“É um desenvolvimento brilhante na medicina veterinária e podemos dizer aos tutores que a maioria dos doentes responde ao tratamento com sucesso” – Sam Taylor, especialista europeia pelo ECVIM-CA
Um fármaco “seguro” que precisa da compliance do tutor
Para harmonizar a conduta dos médicos veterinários na utilização das novas terapêuticas, em maio passado Sam Taylor e um conjunto de outros profissionais dedicados à medicina felina publicaram um documento com as mais recentes atualizações e sugestões de protocolos de tratamento com os novos fármacos. A tomada de posição está disponível para consulta online e tem um email acessível [[email protected]] para tirar dúvidas sobre a terapêutica a quem está na prática clínica.
De visita a Portugal para falar, sobretudo, do GS-441524, a molécula mais utilizada para o tratamento da PIF no Reino Unido, a especialista europeia assegurou que “é um fármaco seguro, com poucos efeitos secundários. Às vezes vemos uma pequena elevação das enzimas hepáticas, assim como alterações nos linfócitos, mas não é clinicamente relevante”.
Aparentemente, o que é mais desafiante neste tratamento é garantir a compliance, ou seja, a adesão do tutor à terapêutica. Sendo a fórmula injetável do fármaco aconselhada apenas para os casos mais graves, em que o animal já tem dificuldade em comer, caberá ao tutor garantir que consegue cumprir os 84 dias de tratamento administrando comprimidos num felino, o que nem sempre é fácil de gerir. Nesse desígnio, é preciso ajudar o detentor do animal, ensinando-lhe truques para garantir que o gato engole mesmo o comprimido e que podem passar por colocar o fármaco na comida húmida, dissimulá-lo nos petiscos preferidos, tudo para assegurar que o animal ingere efetivamente o comprimido. “Precisamos mesmo de guiar permanentemente o tutor e acompanhá-lo”, reforçou a médica veterinária, para garantir o cumprimento do protocolo e também pela responsabilidade clínica de prescrever um antiviral, tal como acontece com os antibióticos: tem de ser para o doente certo e deve ser respeitada a prescrição médica.
A importância deste acompanhamento dos tutores foi, igualmente, destacada por Tomás Magalhães. Afinal, lembrou o presidente do GIEFEL, a administração dos comprimidos “deverá ser o menos stressante possível para o animal e o ideal é que este consiga ingerir o fármaco de forma voluntária”, pois é bem conhecido impacto do stress na imunossupressão dos felinos. Assim, defendeu, “tratando-se de um período de tratamento prolongado, é fundamental que o gato esteja o menos stressado possível para que o seu sistema imunitário esteja competente e consiga debelar esta infeção”.
Neste momento, os profissionais identificam outro desafio no tratamento da PIF: o custo dos fármacos. O valor a ser despendido pelo tutor pode ser uma barreira no acesso ao medicamento, afinal, são 12 semanas de tomas diárias de comprimidos. “Espero que, com o tempo, o custo vá diminuindo com o uso do tratamento” num maior número de casos, admitiu Sam Taylor.
A doença que era uma sentença de morte
A família dos coronavírus ganhou dimensão mediática há cerca de quatro anos, quando o mundo se viu a braços com a primeira pandemia do século XXI – a Covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, do grupo dos betacoronavirus – mas, na clínica veterinária, o coronavírus felino (FCoV), do grupo dos alphacoronavirus, há muito que é uma preocupação entre os profissionais que se dedicam aos pequenos animais de companhia.
O que a evidência científica e a prática clínica têm demonstrado é que o FCoV é “muito prevalente entre os gatos. Contudo, apesar de ser um vírus muito comum, a doença em si [provocada pelo vírus] não é muito frequente”, reconheceu a especialista do Reino Unido à VETERINÁRIA ATUAL. No fundo, é uma questão de sorte, ou melhor de falta dela, dar-se a conjugação “do gato certo, na hora certa, com o vírus certo”, como disse Sam Taylor, para acontecer a mutação do vírus no hospedeiro e o felino desenvolver PIF. “É realmente um gato com pouca sorte”, sublinhou, já que, até agora, desenvolver a doença representava, na quase totalidade dos casos, uma sentença de morte para o animal.
Também se sabe que os gatos mais jovens, com idade inferior a dois anos, são o grupo de maior risco na PIF. Existem algumas raças que parecem ser mais predispostas ao desenvolvimento da doença – como os Abissínios, os Bengals ou os Ragdolls – e também parece haver um risco aumentado de desenvolver PIF em gatos com histórico de convivência em grupo, sejam de procriação, abrigos ou colónias.
O que Sam Taylor evidenciou é que, tal como acontece em outras patologias na medicina felina, “o stress parece ter um papel fundamental [no surgimento da PIF] porque muitos gatos passaram por um evento stressante, que lhes afetou o sistema imunitário, antes de desenvolverem a doença”.
“É imperativo que se aposte na vertente educativa da classe para a utilização das guidelines com o objetivo de melhorar a vertente diagnóstica antes de passar para a abordagem terapêutica que temos disponível” – Tomás Magalhães, presidente do GIEFEL da APMVEAC
Novo tratamento exige diagnósticos rápidos e assertivos
Sendo mestres do disfarce – que tanto são presas, como predadores na natureza –os felinos são conhecidos pelas dificuldades que apresentam aos médicos veterinários no momento do diagnóstico das patologias. Com a PIF não é diferente.
Existindo duas apresentações clínicas – a PIF húmida (ou efusiva) e a PIF seca (não-efusiva) – a patologia é considerada, sobretudo, “uma doença sistémica”, classificou a médica veterinária do Reino Unido, em que o gato pode apresentar sintomas diversos, como o acúmulo de líquido nas cavidades abdominal ou torácica [no caso da PIF húmida], febre intermitente, perda de peso, sintomas neurológicos ou sintomas oculares.
Mas, se até agora a aposta no diagnóstico servia para clarificar que se estava perante uma doença fatal – e o animal era, na maioria das vezes, eutanasiado – hoje o objetivo é diagnosticar a doença o mais cedo possível para iniciar o tratamento precocemente e, assim, salvar a vida do felino. Os bons resultados nas taxas de sobrevivência são alcançados principalmente em estados iniciais da doença, os cerca de 10% de doentes não respondedores ao tratamento são, na grande maioria, gatos que iniciaram o tratamento já em fases mais avançadas da PIF.
Nessa medida, Sam Taylor advoga que devem ser realizados os exames necessários para o profissional ter a confiança no diagnóstico e iniciar o tratamento, mas desaconselha que se gaste todo o plafond do cliente em exames complementares de diagnóstico, atrasando o diagnóstico e diminuindo as capacidades financeiras do tutor pagar o tratamento. “Precisamos de fazer o suficiente para descartar outras condições, mas não devemos utilizar o plafond em ressonâncias magnéticas ou procedimentos diagnósticos invasivos caros porque sabemos que precisamos de ter fundos para o tratamento”, reforçou a especialista europeia.
Neste campo do diagnóstico, os médicos veterinários têm também à disposição ferramentas disponíveis online, como as desenvolvidas pelo European Advisory Board on Cat Diseases (ABCD Europe), com algoritmos que facilitam a tomada de decisão em cada caso, mesmo sem ter de esperar por todos os resultados dos exames.
Tomás Magalhães apontou ainda a necessidade de rever a pertinência da realização de testes serológicos para a presença de anticorpos anti-coronavírus felino já que estes apenas identificam o contacto do animal com o vírus, bastante disseminado entre a espécie, e não diagnosticam a patologia. Aliás, o presidente do GIEFEL está convencido que “a PIF em Portugal estava a ser sobrediagnosticada” devido ao recurso recorrente a esse exame complementar. “Infelizmente, acho que, durante algum tempo, houve gatos que foram diagnosticados com PIF com base apenas nesta serologia, uma prática completamente errada, e alguns gatos poderão ter sido sentenciados à morte porque houve um diagnóstico errado da patologia”, acredita o médico veterinário.
Hoje já são conhecidos outros métodos de diagnóstico como a medição da alfa-1 glicoproteína ácida (AGP), a imunohistoquímica, a análise dos fluídos corporais ou das lesões granulomatosas que o animal possa apresentar considerados mais efetivos a detetar a presença da doença.
E atendendo à recente possibilidade de tratamento da patologia, para Tomás Magalhães “é imperativo que se aposte na vertente educativa da classe para a utilização das guidelines com o objetivo de melhorar a vertente diagnóstica antes de passar para a abordagem terapêutica que temos disponível”. Uma nova realidade que, rematou, vai “mudar uma doença que era fatal e para a qual não tínhamos nenhuma resposta terapêutica para uma doença que tem uma taxa muito elevada de animais que ficam curados”.
Fonte: Veterinaria Atual – PT