Médica-veterinária transforma luto em homenagem na ciência e dá nome de noivo a novo parasito marinho
A perda de um ente querido é um dos momentos mais difíceis na vida de qualquer pessoa, e para a médica-veterinária Robertta Gitahy Freire (CRMV-RJ 18715), que é membro da Comissão Estadual de Alimentos do CRMV-RJ, esse momento trouxe consigo um desafio ainda maior. Com a morte precoce de seu noivo, Woodson Leira Cordeiro, carinhosamente chamado de Wood, em abril de 2023, a profissional encontrou na ciência uma forma de preservar sua memória e honrar o incentivo constante que ele ofereceu em vida. Em uma trajetória marcada pelo luto e pela resiliência, ela concluiu um estudo científico que resultou na descrição de uma nova espécie de parasito, a qual batizou de Lobatozoum woodi em homenagem a Woodson.
O estudo, intitulado “Lobatozoum woodi n. sp. (Digenea: Didymozoidae) parasitizing Euthynnus alletteratus (Scombriformes: Scombridae) in the coast of the State of Rio de Janeiro, Brazil” foi publicado na Revista Brasileira de Parasitologia Veterinária e contou com a colaboração dos autores Marcia Cristina Nascimento Justo, Yuri Costa Meneses, Alena Mayo Iñiguez, e Simone Chinicz Cohen. Esse artigo representa não apenas uma contribuição importante para a ictioparasitologia, mas também uma homenagem a alguém que foi seu maior apoio e inspiração.
“Woodson era o meu parceiro em todas as etapas da vida”, relata Robertta, que conheceu o noivo durante a faculdade de Medicina Veterinária. “Nós compartilhávamos o sonho de atuar na área de saúde, especialmente no controle de qualidade de alimentos. Ele sempre esteve ao meu lado, especialmente nos momentos difíceis, como a perda do meu pai, e me motivou a concluir minha formação e seguir com meus projetos”. Para Robertta, dedicar o nome de uma nova espécie ao noivo é uma maneira de eternizar seu legado e celebrar o apoio incondicional que ele ofereceu.
No Laboratório de Helmintos Parasitos de Peixes do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz (LHPP/IOC), existe uma linha de pesquisa dedicada ao estudo taxonômico com abordagens morfológicas e moleculares de trematódeos pertencentes à família Didymozoidae parasitos de atuns e afins da costa do Rio de Janeiro. O projeto de mestrado de Robertta, vinculado ao Programa de Biodiversidade e Saúde (IOC) está inserido nessa linha de pesquisa, o qual tem por objetivo obter dados através do uso da taxonomia integrativa, fornecendo assim informações que irão subsidiar um melhor entendimento deste grupo de helmintos.
Veja a entrevista completa:
1. Qual é a importância de identificar e descrever novas espécies de parasitos como Lobatozoum woodi para a prática médica veterinária, especialmente em regiões costeiras?
R: O artigo citado foi publicado na Revista Brasileira de Parasitologia Veterinária, no qual abordamos a respeito de uma família de Platelmintos da classe Trematoda que, apesar do grande número de espécies conhecidas (cerca de 270), é pouco explorada se compararmos com outras famílias de helmintos parasitos. O Laboratório de Helmintos Parasitos de Peixes do Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz (LHPP/IOC), tem uma linha de pesquisa dedicada ao estudo taxonômico com abordagens morfológicas e moleculares de trematódeos pertencentes à família Didymozoidae parasitos de atuns e afins da costa do Rio de Janeiro. Meu projeto de mestrado vinculado ao Programa de Biodiversidade e Saúde (IOC) está inserido nessa linha de pesquisa, o qual tem por objetivo obter dados através do uso da taxonomia integrativa, fornecendo assim informações que irão subsidiar um melhor entendimento deste grupo de helmintos. Durante pesquisas em peixes escombrídeos (atuns e afins) coletados na costa do Rio de Janeiro, espécimes de Euthynnus alletteratus foram examinados e foi possível observar que uma das espécies de Didymozoidae encontrada era diferente de todas as outras já conhecidas, e depois de estudos morfológicos realizados através do microscópio de luz, concluímos se tratar de uma nova espécie para ciência. A descrição da espécie Lobatozoum woodi contribui para o conhecimento da diversidade de espécies de helmintos parasitos de peixes na costa brasileira, demonstrando que a fauna de parasitos desses hospedeiros ainda não é totalmente conhecida e mais estudos devem ser realizados para descrição de novas espécies e novos registros biogeográficos.
2. Como os achados do seu estudo podem auxiliar médicos-veterinários que trabalham com inspeção de pescado e controle de zoonoses?
R: Apesar de não haver confirmação do potencial zoonótico, os nossos achados demonstram a fragilidade dos organismos marinhos e chamam atenção pelos diferentes grupos de parasitos neles encontrados. Logo, nós, Médicos Veterinários, precisamos reforçar a importância das fiscalizações do pescado e fornecer orientações aos serviços de alimentação e manipuladores.
3. Em sua opinião, quais impactos essa nova espécie de parasito pode ter na saúde e bem-estar dos peixes e na segurança dos alimentos de pescado para consumo humano?
Por se tratar de uma espécie nova e ainda não ter sido estudada quanto as implicações na saúde do peixe, não temos dados que possam afirmar os danos patológicos. No entanto, estudos anteriores realizados pela equipe do LHPP com outras espécies de Didymozoidae demonstraram que os danos à saúde do hospedeiro dependem muito do sítio e da intensidade da infecção. Por se tratar de um parasito relativamente grande, pode ser facilmente observado parasitando o mesentério dos peixes. A presença desses parasitos visíveis a olho nu, podem causar um impacto econômico devido ao aspecto repugnante, o que muitas vezes leva a necessidade de descarte dos peixes.
4. Quais técnicas de diagnóstico parasitológico você recomendaria para médicos-veterinários que atuam em áreas de pesca e monitoramento de espécies marinhas?
R: As técnicas de diagnósticos irão depender do grupo parasito em questão, já que cada grupo exige uma metodologia de coleta, fixação e conservação. No caso do meu experimento, trabalhamos com peixes adquiridos diretamente de pescadores ou de comércios como mercados e peixarias, portanto, a técnica utilizada consiste na verificação macroscópica das estruturas externas para análise de ectoparasitos e posteriormente a necropsia para coleta de endoparasitos em diferentes órgãos dos hospedeiros. Após isso, os exemplares são processados e estudados em microscopia de luz, confocal a laser e alguns são selecionados para biologia molecular.
Em casos de peixes capturados diretamente de seu habitat pelo pesquisador, é necessário passar pelo processo de insensibilização (de acordo com as normas de bem-estar) seguido dos processos de coleta. Vale lembrar que todo procedimento que necessite de eutanásia dos organismos, deverá ser realizado por profissional com capacitação e documentação necessária.
5. De que forma essa descoberta pode contribuir para o manejo e a conservação de espécies marinhas economicamente importantes, como Euthynnus alletteratus?
R: Os ambientes marinhos estão sendo cada vez mais alterados pela intensa atividade antropogênica que causam consideráveis modificações no habitat dos peixes e de todos os outros organismos, logo, estudos que envolvam esse ecossistema, são extremamente importantes no contexto de Uma Só Saúde (“One Health”). As linhas de pesquisa que envolvem a ictioparasitologia são muito abrangentes, e podem ser utilizadas como indicadores de vários aspectos da biologia e ecologia dos seus hospedeiros, extramamente . Os dados ecológicos das comunidades de parasitos podem ser utilizados em conjunto com outros indicadores para delinear os padrões de migração, estruturação populacional e filogenia dos hospedeiros. Além disso, uso de helmintos como marcadores naturais de estoques de peixes é outro fator de interesse, uma vez que pode servir para distinguir e estudar padrões de migração de populações hospedeiras altamente migratórias como o Euthynnus alletteratus.
6. Como os médicos-veterinários podem se beneficiar do seu estudo para aprimorar práticas de diagnóstico e controle de parasitos em ambientes aquáticos?
A equipe do LHPP possui grande expertise em técnicas de coleta, processamento, identificação taxonômica, descrição e registro de espécies de helmintos parasitos. A família Didymozoidae constitui um grupo de helmintos muitas vezes negligenciados por serem extremamente difíceis de coletar e processar devido as peculiaridades inerentes a morfologia, e talvez isso explique o fato de que há poucos grupos de pesquisa ativos no mundo que se dedicam ao estudo destes helmintos. Na América do Sul, o único grupo ativo é a equipe do LHPP ao qual faço parte. Esse estudo poderá contribuir com dados para futuras pesquisas em todo mundo, já que fornece detalhamento das estruturas morfológicas do parasito através de imagens de microscopia de luz e confocal, além de ilustrações através de desenhos.
Além dos estudos morfológicos, meu projeto de mestrado tem como objetivo gerar dados moleculares das espécies estudadas, o que irá contribuir com depósitos de sequências genéticas em bancos de dados como GenBank, compreensão das relações filogenéticas do grupo, contribuindo para o entendimento deste táxon tão complexo.
7. Quais são as principais precauções que médicos-veterinários e profissionais de inspeção devem adotar ao lidar com peixes potencialmente parasitados por espécies como Lobatozoum woodi?
Embora a literatura registre estudos antigos que postulam que larvas destes helmintos poderiam fazer migrações no organismo humano, e apresenta também o registo da presença de ovos em fezes de humanos, até o momento não se confirmou o potencial zoonótico desses helmintos, uma vez que a migração das larvas não foi confirmada e a presença dos ovos em fezes humanas poderia ser apenas uma ação mecânica de passagem após a ingestão de carne de peixe crua ou mal-cozida. No entanto, todo cuidado deve ser tomado e Médicos Veterinários devem sempre levar em consideração a presença do parasito independente da espécie. No ato da inspeção, a verificação minuciosa deve de ser feita para diminuir as chances de um produto parasitado ser consumido.
8. Qual a sua visão sobre a importância do médico-veterinário na pesquisa e no controle de parasitos em ambientes marinhos, especialmente em um cenário de aumento do consumo de pescado?
Nós, Médicos Veterinários, estamos sendo mais bem aceitos na área da ciência com o passar do tempo. No laboratório que realizado meu mestrado, sou a única atuando como veterinária e isso demonstra a desvalorização desta atuação desde a faculdade, fazendo com que poucos alunos tenham interesse, cenário este que vem sendo alterado. Por sua vez, os organismos marinhos estão cada vez mais inseridos na dieta da sociedade, o que me deixa cada vez mais em alerta, pois acredito que somos extremamente competentes para atuar na área pelo conhecimento completo em anatomia, fisiologia e em todos os processos que envolvem segurança dos alimentos.
Minha missão é continuar contribuindo com mais pesquisas e concomitante, utilizar as ferramentas que me coloquem em contato mais direto com a sociedade, que são as mídias sociais, para realizar trabalhos de educação em saúde, como já realizo em meu perfil profissional, com intuito de informar cada vez mais a sociedade.
Fonte: CRMV-RJ
Foto: CRMV-RJ