Leishmaniose: Duplicação da prevalência da infeção em Portugal preocupa veterinários - Vetsapiens

Leishmaniose: Duplicação da prevalência da infeção em Portugal preocupa veterinários

27 de junho de 2023

Já atingiu 12,5% a seroprevalência da infeção por leishmania em Portugal, valor que representa praticamente o dobro dos 6,3% registados no último inquérito epidemiológico nacional, realizado em 2009.

A conclusão é do estudo Seroprevalência e Fatores de Risco Associados à Infeção por Leishmania em Cães de Portugal, cujos resultados estão neste artigo. 

“A chave para o controlo da leishmaniose canina e o seu impacto na saúde pública em áreas endémicas reside na implementação contínua de medidas profiláticas, através da utilização correta de repelentes/inseticidas e da vacinação, da deteção precoce e monitorização de cães infetados”.

Quem o diz são os investigadores responsáveis pelo estudo Seroprevalência e Fatores de Risco Associados à Infeção por Leishmania em Cães de Portugal – promovido pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, com o apoio da MSD Animal Health e da LETI Pharma – que apurou uma prevalência da doença a nível nacional na ordem dos 12,5%, quase o dobro do valor apurado há uma década, no último inquérito.

“A realização de um estudo sobre a seroprevalência de uma doença como a leishmaniose canina é de extrema importância para compreendermos como está o nosso País em relação ao número de cães infetados e quais os principais fatores de risco para esta infeção”, salienta a responsável do departamento científico de animais de companhia da MSD Animal Health em Portugal, Inês Barbosa, acrescentando que “torna-se ainda mais relevante quando o conseguimos comparar com outro estudo, realizado em 2009, dando-nos uma perspetiva do que tem vindo a acontecer a nível nacional nos últimos anos e do que podemos fazer para prevenir o aumento do número de casos identificados”.

“Neste estudo apercebemo-nos de que existe uma falta de compromisso, por parte dos tutores, em relação às prescrições efetuadas, em particular no que diz respeito ao cumprimento dos intervalos de administração dos medicamentos.” – Inês Barbosa

Em 2009, tinha-se identificado uma seroprevalência de leishmaniose canina de 6,3%. Em 2021, e de acordo com o referido estudo, esse valor praticamente duplicou, tendo as regiões de Castelo Branco e Portalegre sido as mais afetadas, com valores na ordem dos 30%.

“Tal como Portugal, toda a região do Sul da Europa é endémica para a leishmaniose canina, com taxas de prevalência da infeção que podem chegar aos 60%. Infelizmente, devido às alterações do clima a leishmaniose canina está também a expandir-se para o hemisfério norte e para zonas de maior altitude, onde ainda é uma doença pouco conhecida”, alerta Inês Barbosa, sustentando que “a vigilância epidemiológica é, portanto, fundamental para determinar a extensão da doença nestas áreas e implementar medidas de prevenção”.

Resultados recebidos com perplexidade e preocupação

De acordo com a médica veterinária envolvida no estudo Seroprevalência e Fatores de Risco Associados à Infeção por Leishmania em Cães de Portugal, “estes valores são de facto preocupantes, principalmente se pensarmos que foi exatamente nesta última década que surgiram no mercado vários medicamentos veterinários para a prevenção desta doença”.

No entender da responsável da MSD Animal Health, “tem havido um grande esforço, por parte da indústria farmacêutica e das equipas médico-veterinárias, em educar os tutores sobre a leishmaniose e as formas de a prevenir. Neste estudo apercebemo-nos de que existe uma falta de compromisso, por parte dos tutores, em relação às prescrições efetuadas, em particular no que diz respeito ao cumprimento dos intervalos de administração dos medicamentos, o que leva a que muitos animais fiquem desprotegidos durante longos períodos de tempo”.

Por sua vez, Ricardo Almeida, DMV, MBA da Clínica VetPóvoa, confessa-se “um pouco perplexo com os resultados do estudo, essencialmente por duas razões: a primeira prende-se com o facto de a prevalência ter aumentado a nível nacional, a segunda com as cidades em que a prevalência se revelou maior, uma vez que nunca foram cidades que considerasse endémicas da doença (especialmente Guarda que é a zona que conheço melhor dentro das regiões em destaque no estudo)”.

Ainda a este respeito, o veterinário refere: “A leishmaniose sempre acompanhou o meu percurso pessoal e profissional enquanto clínico. Sou natural da Figueira da Foz, estudei em Vila Real, passei por Girona e pela Lousã e encontro-me em Coimbra deste 2006. Apesar de neste momento estar nas consultas externas muito menos tempo do que no início de carreira, posso afirmar, enquanto diretor clínico da VetPóvoa e coordenador de uma equipa de doze elementos, que a quantidade quer de seropositivos, quer de doentes que temos diagnosticado é muito inferior ao que era no passado”. Neste sentido, “e se tivermos em conta que temos de introduzir um fator de correção relativo ao aumento exponencial de pacientes nos últimos anos, essa diminuição é ainda mais expressiva”. Posto isto, Ricardo Almeida admite que “estaria à espera de uma diminuição da prevalência de seropositivos”.

“Atualmente, parece que as leishmanias estão mais resistentes à terapia, sendo necessário mais tempo de tratamento e verificando-se uma maior demora na obtenção de resultados clínicos e na normalização do sistema imunitário. Por sua vez, os períodos de remissão da doença são geralmente mais curtos.” – Ricardo Almeida

Para o médico veterinário, “estes resultados podem eventualmente estar a referir dois fenómenos: por um lado, um maior cuidado com a prevenção nas cidades em que a doença era mais prevalente; por outro, eventuais alterações climáticas que podem estar a criar condições de sobrevivência para o vetor da doença em zonas cada vez mais abrangentes, nomeadamente na cidade com maior altitude do País”.

No entanto, “não posso deixar de referir que as respostas a esta entrevista têm por base apenas e só a minha experiência enquanto clínico, associada à perceção pessoal obtida por várias conversas com colegas, assim como por palestras e estudos a que tenho tido acesso ao longo dos anos”.

Mas há outros fatores que podem ajudar a explicar estes resultados, na opinião de Inês Barbosa. Desde logo, o alargamento da época de atividade dos flebótomos, para períodos anteriormente considerados como épocas “baixas” dos parasitas, “o que justifica o facto de muitos animais não estarem devidamente protegidos nas alturas em que o flebótomo ainda está ativo”, refere a veterinária.

“Outro ponto a considerar é a aquisição de medicamentos veterinários sem um aconselhamento profissional que pode contribuir para uma aplicação incorreta do medicamento ou mesmo um desconhecimento de quais os parasitas para os quais o medicamento veterinário administrado protege os animais”, conclui.

Conhecer os fatores de risco, atuar preventivamente e educar os tutores

O estudo – que teve por base questionários e amostras de sangue a 1.860 cães de tutores particulares em Portugal Continental, recolhidos entre janeiro e março de 2021, e em que foi utilizado um teste de aglutinação direta para calcular os níveis de anticorpos anti-leishmania – concluiu, ainda, que os fatores de maior risco estão associados a cães com mais de dois anos, residentes em zonas mais interiores do País e que não usam repelentes.

“É exatamente na utilização de medicamentos veterinários com ação repelente sobre o flebótomo, que está assente a principal medida profilática para a leishmaniose canina.

Atualmente, existem vários medicamentos veterinários, desde pipetas a coleiras, com atividade anti-alimentar sobre o flebótomo. É muito importante, para a sua correta utilização, conhecer a duração e o modo de ação dos medicamentos. A vacinação é uma medida profilática que pode complementar a utilização dos repelentes, reduzindo o risco de desenvolvimento de uma infeção ativa e/ou doença clínica após exposição a Leishmania infantum”, aponta a responsável da MSD Animal Health, frisando que há outras medidas que podem ser adotadas, como “a manutenção dos cães dentro de casa desde o anoitecer até ao amanhecer, a utilização de redes mosquiteiras nas portas e janelas e a redução dos locais de reprodução dos flebótomos, através da remoção do lixo e evitando acumulações de matéria orgânica nos locais onde o cão tem acesso”.

Os fatores de maior risco estão associados a cães com mais de dois anos, residentes em zonas mais interiores do País e que não usam repelentes.

Igualmente fundamental, neste contexto, é a educação do tutor, “sendo de extrema importância explicar como funcionam os medicamentos e quais os cuidados a ter”, frisa Inês Barbosa, defendendo que “o ideal seria poder ter uma consulta dedicada à leishmaniose, em que todo o tempo de consulta seria dedicado a explicar a doença, em especial as formas de transmissão, e os cuidados a ter para prevenir que o animal fique doente”. Já Ricardo Almeida adianta que, “na cidade de Coimbra, a grande maioria dos clientes conhece a doença demasiado bem, infelizmente pelas piores razões”. E acrescenta, a este respeito: “Desde 2006 que referimos a importância da prevenção ainda durante as primeiras vacinas e orgulhamo-nos de a grande maioria dos nossos clientes utilizar corretamente os repelentes e uma percentagem crescente estar a utilizar a vacinação preventiva”.

Ainda de acordo com a responsável da MSD Animal Health, reconhecendo que Portugal é um País endémico para a leishmaniose canina e que atualmente existe uma grande mobilidade de pessoas e animais, “o acesso a medidas preventivas deve ser transversal a todo o País e cabe ao médico veterinário, em conjunto com o tutor, delinear qual o melhor protocolo para proteger cada animal de companhia da leishmaniose”.

Impacto na saúde pública e desafios terapêuticos

Importa ainda sublinhar que a leishmaniose é uma zoonose, com particular impacto em doentes VIH/Sida, imunocomprometidos e/ou submetidos a terapêuticas imunossupressoras, “existindo cerca de uma dezena de casos de leishmaniose visceral reportados por ano em Portugal”, refere Inês Barbosa. No entanto, pensa-se que exista um subdiagnóstico e subnotificação desta doença de notificação obrigatória no homem.

Na ótica da veterinária, “a leishmaniose é um exemplo de como os médicos veterinários atuam no âmbito do conceito de Uma Só Saúde, pois através da proteção do cão com leishmaniose, através da utilização de medicamentos com ação repelente sobre o flebótomo, vamos contribuir para reduzir a população de flebótomos parasitados no ambiente e assim prevenir a infeção do homem e de mais animais”.

No plano da terapêutica, “embora a cura parasitológica raramente seja alcançada e as recidivas clínicas ocorram frequentemente após o tratamento, existem alguns protocolos terapêuticos disponíveis que podem promover a cura clínica, aumentar a esperança de vida e melhorar a qualidade de vida, além de reduzir a carga parasitária e assim o potencial infecioso para os vetores”, refere a responsável da MSD Animal Health.

A este respeito, adianta, “o alopurinol é um dos fármacos disponíveis para o tratamento da leishmaniose canina, muitas vezes em combinação com antimoniato de meglumina ou miltefosina e depois continuado em monoterapia. A domperidona, os nucleótidos nutricionais e os Compostos Correlacionados de Hexoxe Ativa (AHCC – Active Hexose Correlated Compounds) estão também descritos pelo grupo Leishvet com uma forma possível de monoterapia numa fase inicial da doença. A longo prazo, o tratamento de suporte em conjunto com uma alimentação equilibrada também devem ser considerados”.

Por motivos de saúde pública, advoga Inês Barbosa, “é fundamental que os cães parasitados utilizem medicamentos com ação repelente sobre o flebótomo”.

A este nível, Ricardo Almeida destaca como principal desafio a crescente resistência aos medicamentos. “Pela nossa experiência clínica, os casos de leishmaniose do passado, apesar de serem em grande quantidade, eram também altamente responsivos ao tratamento. Atualmente, parece que as leishmanias estão mais resistentes à terapia, sendo necessário mais tempo de tratamento e verificando-se uma maior demora na obtenção de resultados clínicos e na normalização do sistema imunitário. Por sua vez, os períodos de remissão da doença são geralmente mais curtos”, sublinha o médico veterinário, para quem um dos principais motivos para esta situação reside no “desinvestimento por parte da indústria farmacêutica em novos leishmanicidas eficazes”.

Assim sendo, esclarece, “o estado de arte no tratamento da leishmaniose continua a ser um dos mais antigos e para muitos clínicos, mesmo de sempre, ou seja os antimoniais”, avança Ricardo Almeida, congratulando-se, porém, com o facto de “estarmos felizmente a assistir a muito investimento nas áreas da prevenção e da imunoterapia, que têm ajudado muito no controlo da doença”.

Uma ideia corroborada por Inês Barbosa que conclui que, “atualmente, estão a ser feitos esforços consideráveis por profissionais de áreas multidisciplinares no sentido de aperfeiçoar o conhecimento sobre esta doença parasitária para que futuramente a prevenção, o tratamento e o controlo da leishmaniose possam ser melhorados”.

Fonte: Cláudia Brito Marques, 16 Junho, 2023 em Veterinária Atual (https://www.veterinaria-atual.pt/destaques/leishmaniose-duplicacao-da-seroprevalencia-da-infecao-em-portugal-na-ultima-decada-preocupa-veterinarios/)

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