Cientistas restauram conexões neurais de roedores com substância sintética - Vetsapiens

Cientistas restauram conexões neurais de roedores com substância sintética

2 de dezembro de 2020
notícias

Experimento abre nova frente de tratamento para doenças agudas e crônicas do sistema nervoso central.

WALACE GOMES LEAL
Especial para Direto da Ciência*
Domingo, 8 de novembro de 2020, 6h30.

Pesquisadores japoneses da Universidade Keio, em colaboração com colegas de outras instituições, relataram no final de agosto que conseguiram, em camundongos, restaurar as conexões entre neurônios – as chamadas sinapses – e também induzir recuperação de função em modelos experimentais de doença de Alzheimer, lesão do cerebelo e trauma da medula espinhal. Nesse trabalho, os cientistas criaram uma substância sintética que funcionou como “organizador sináptico” artificial. O estudo traz perspectivas para novas técnicas de tratamentos para doenças agudas e crônicas do sistema nervoso central.

Publicado no periódico Science,1 o artigo da equipe é o primeiro a relatar o uso de uma substância sintética com essa finalidade. Existem vários tipos de “organizadores sinápticos” naturais, que são proteínas andaimes que estabilizam e garantem a perfeita transmissão de informação neural na sinapse química,a o principal tipo de sinapse no sistema nervoso.

O cérebro contém cerca de 86 bilhões de neurônios e trilhões de sinapses, que são as unidades computacionais do sistema nervoso, estruturas complexas e dinâmicas que permitem a transmissão de impulsos elétricos de um neurônio para o outro. Considerando o enorme número de sinapses, o leitor deve imaginar a imensa capacidade computacional do cérebro, o ápice do sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal) e certamente o órgão mais complexo que se conhece, uma estrutura orgânica de cerca de 1.350 gramas capaz de feitos notáveis, como criar um modelo de realidade e suas sensações, organizar atos motores e gerar a percepção consciente da realidade por um mecanismo que a ciência ainda tenta desvendar.

 

Desconexão neural

Para que essas funções complexas sejam executadas, as conexões entre os neurônios (sinapses) têm que estar intactas. Na verdade, os padrões de conectividade entre os neurônios e suas interações com outros tipos celulares chamados de células gliais são fundamentais para um bom desempenho das funções neurológicas. Em inúmeras doenças agudas e crônicas do sistema nervoso, os neurônios e suas conexões são perdidos durante o processo lesivo, induzindo perda funcional. Esse é o caso das doenças neurodegenerativas crônicas, como as doenças de Alzheimer (DA), Parkinson, Huntington, esclerose lateral amiotrófica (ELA), esclerose múltipla e das desordens neurais agudas, como o acidente vascular cerebral (AVC) e os traumas do cérebro e da medula espinhal.

Nessas desordens neurais, além da perda de neurônios, também ocorre a de sinapses, com consequências nefastas para a transmissão e função neurais. Por exemplo, na DA, por uma causa desconhecida, neurônios cerebrais começam a morrer, gerando incialmente perda de memória recente (anterógrada) e preservação da memória antiga (retrógada). Muitos outros tipos celulares e sinapses são perdidos com o declínio progressivo de várias funções cognitivas.

O rompimento dos axônios gerando desconexão entre o cérebro e a medula espinhal é um evento lesivo importante após trauma da medula espinhal, como o que ocorre após um acidente automobilístico, e cientistas buscam há mais de um século reconectar esses cabos biológicos, sem sucesso. Uma abordagem promissora que utiliza o transplante de progenitores neurais, a do relé neuronal, foi por mim discutida aqui em Direto da Ciência.3

 

O experimento

A sinapse química possui esse nome pois usa uma substância química chamada neurotransmissor para transmitir o sinal elétrico de um neurônio para o outro. O neurotransmissor é dito inibitório quando inibe os disparos de impulso nervoso no neurônio seguinte (pós-sináptico) e é chamado de excitatório quando faz o neurônio pós-sináptico disparar mais sinais elétricos. Na estrutura sináptica, as partes dos dois neurônios que se comunicam estão acopladas pelos organizadores sinápticos presentes nas membranas pré e pós sinápticas e separados por uma minúscula fenda, a fenda sináptica.

Em doenças neurodegenerativas crônicas, como a DA, e em desordens agudas, como lesão da medula espinhal, e mesmo em doenças como autismo e esquizofrenia, ocorrem perdas sinápticas e problemas de transmissão neural. Kunimichi Suzuki, Michisuke Yuzaki e seus colegas das universidades Keiko, de Oxford e de outras instituições levantaram a hipótese de que poderiam criar um organizador sináptico sintético que poderia restaurar a perda sináptica e as conexões neurais após doenças do sistema nervoso central. Eles desenvolveram a ideia de que tal organizador sináptico sintético (OSis) poderia ser injetado em animais com DA experimental, lesão do cerebelo e trauma da medula espinhal. Ao observarem os OSis endógenos mais eficazes, de acordo com estudos prévios,3 escolheram a pentraxina neuronal (PTNe) e a cerebelina-1 (Cer-1). Usando técnicas de cristalografia, difração de raio X b e ressonância plasmônica de superfície,c os autores maximizaram as propriedades tanto da PTNe como da Cer-1, criando uma proteína andaime sintética com funções efetivas como organizador sináptico em forma de um hexâmero – o CPTX.

 

Ponte molecular

No estudo em questão, Kunimichi Suzuki e seus colegas primeiro mostraram que o CPTX foi eficaz in vitro (na ausência de um organismo vivo) reconectando sinapses e facilitando a transmissão neural em neurônios do cerebelo (região na parte posterior do cérebro importante para o controle motor) e do hipocampo (região do sistema límbico importante para alguns tipos de memória e aspectos emocionais). Nesse modelo in vitro, o CPTX agiu como um tipo de ponte molecular restaurando as funções e a condução sinápticas.

Depois disso, os pesquisadores testaram a eficácia do CPTX no hipocampo e em modelos experimentais de DA, lesão do cerebelo (ataxia cerebelar) e trauma da medula espinhal em camundongos. A injeção de CPTX no hipocampo de animais saudáveis induziu o crescimento do número de sinapses. Quando o organizador sináptico sintético foi injetado em camundongos mais velhos (15 a 18 meses de idade, o que corresponde a 60 a 70 anos em humanos) houve a restauração do número de sinapses perdidas durante o processo de envelhecimento, com recuperação da transmissão neural. Além disso, os animais mais velhos passaram a ter uma pontuação melhor em testes de memória.

Nos camundongos transgênicos 5xFAD que apresentam sintomas de DA, como deposição de proteína beta amiloide e perda sináptica, a injeção de CTPX no hipocampo restaurou a perda sináptica e a transmissão neural, revertendo a perda cognitiva avaliada por testes comportamentais. Os animais injetados com CPTX tiveram melhor desempenho em testes de memória com discriminação de contexto, onde tinham que lembrar de uma situação prévia.

Os autores injetaram o CPTX no cerebelo de camundongos transgênicos apresentando sintomas de ataxia cerebelar.d Os animais injetados apresentaram melhor postura e coordenação motora, o que não aconteceu nos roedores que não foram tratados. A perda de sinapses observada nesse modelo experimental também foi restaurada. Os efeitos aconteceram em uma fase bem aguda, cerca de três dias após a lesão.

Finalmente, os pesquisadores induziram um corte (transecção) na medula espinhal de camundongos ou induziram uma lesão por contusão, o que parece bastante com a lesão humana durante um acidente automobilístico. Os animais apresentaram diversos déficits motores e sensoriais após essas lesões feitas na região torácica (T10) da medula espinhal. Em animais injetados com CPTX, observou-se, utilizando marcação por imunofluorescência dupla, a presença desse organizador sináptico sintético em estruturas de sinapses excitatórias e um maior número delas em regiões em torno da lesão. Utilizando testes comportamentais específicos, os autores observaram uma considerável recuperação motora em relação aos animais controle, principalmente naqueles tratados concomitantemente com condroitinase ABC, uma enzima que degrada proteoglicanos que são moléculas que inibem o crescimento de axônios.

 

Perspectivas futuras

Os dados científicos relatados por Suzuki e seus colaboradores abrem uma nova possibilidade de tratamento terapêutico para doenças agudas e crônicas do sistema nervoso central. A molécula sintética CPTX é um organizador sináptico feito em laboratório que induziu, in vitro e in vivo, sinapses estruturais e funcionais excitatórias, criando pontes moleculares em conexões com outras moléculas como as neurexinas para a reconstrução de circuitos neuronais perdidos durante o processo lesivo em três diferentes tipos de doenças. As neurexinas ajudam na organização da sinapse. Tal abordagem é promissora por restaurar as conexões sinápticas, facilitar a transmissão neural e contribuir para a recuperação funcional.

Novos estudos devem testar novos organizadores sinápticos para outros tipos de sinapses e em outras doenças do SNC, garantindo que a transmissão neural restaurada é funcional e não anômala. Com esses cuidados, o futuro da medicina poderá contar com uma nova clássica de fármacos – a dos organizadores sinápticos sintéticos, os quais poderão ser associados a outras abordagens regenerativas como a do relé neuronal.1

WALACE GOMES LEAL é professor dos programas de Oncologia e Ciências Médicas e de Neurociências e Biologia Celular da Universidade Federal do Pará (Ufpa) e professor do Programa de Pós-Graduação da Rede Bionorte e do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). [email protected]

Notas

  •  A sinapse química é composta de três estruturas básicas: a membrana pré-sináptica, a fenda sináptica, e a membra pós-sináptica. Essas estruturas só podem ser vistas por um microscópio eletrônico, por serem muito pequenas, abaixo do limite de resolução da microscopia óptica (um décimo de milímetro). Quando um neurônio está conectando fisicamente com outro na sinapse química, existe um espaço microscópico, a fenda sináptica, onde o neurônio pré-sináptico libera o neurotransmissor, por exemplo o glutamato GABA, a partir de vesículas sinápticas (exocitose). Os receptores agem em receptores presentes na membrana pós-sináptica abrindo canais iônicos específicos, o que pode gerar um aumento ou diminuição da excitabilidade celular.
  • b Após a cristalização de uma proteína por técnicas químicas, sua estrutura pode ser estudada pela técnica de difração de raio X. Com esta técnica, a estrutura molecular de uma molécula pode ser estabelecida. Os autores usaram essas técnicas para estudar a estrutura molecular do CPTX.
  • c Uma técnica aplicada a nanomateriais. Nanopartículas podem ser aglomeradas e sua estrutura identificada. A interação com ondas eletromagnéticas muda o comportamento de nuvens de elétrons em superfícies metálicas, mudando sua cor em solução. Essa técnica foi usada no estudo a que se refere o artigo para estudar os aglomerados de receptores pós-sinápticos e organizadores sinápticos
  • d Na ataxia cerebelar o indíviduo tem sérios problemas de coordenação motora, pois o cerebelo é um importante órgão neural de controle motor. Por exemplo, na ataxia apendicular, um indíviduo não consegue fazer movimentos precisos com a ponta dos dedos, como levar um dedo à ponta do nariz. Esse teste é usado por neurologistas para avaliar a função cerebelar. Lesão na região lateral e intermediária no córtex do cerebelo pode induzir sintomas de ataxia cerebelar.

Referências

  1. Suzuki K, Elegheert J, Song I et al. A synthetic synaptic organizer protein restores glutamatergic neuronal circuitsScience. 2020; 369: eabb4853.
  2. T. Biederer, P. S. Kaeser, T. A. Blanpied. Transcellular nanoalignment of synaptic functionNeuron 96, 680–696 (2017).
  3. Gomes-Leal W. Paraplégicos e tetraplégicos podem andar de novo? A esperança do relé neuronalDireto da Ciência.
Na imagem no alto, ilustração de Lotusbluete para Pixabay.

Fonte: http://www.diretodaciencia.com/2020/11/08/cientistas-restauram-conexoes-neurais-de-ratos-com-substancia-sintetica/?utm_source=GoDaddy&utm_medium=email&utm_content=Cientistas+restauram+conex%C3%B5es+neurais+de+roedores+com+subst%C3%A2ncia+sint%C3%A9tica&utm_campaign=20201107_m160737674_Cientistas+restauram+conex%C3%B5es+neurais+de+roedores+com+subst%C3%A2ncia+sint%C3%A9tica&utm_term=Clique+aqui+para+ler+o+artigo+de+Walace+Gomes+Leal+para+Direto+da+Ci_C3_AAncia_

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